armadilha

1.Isto não está voltado à construção da ordem.

Sua prática é a do descaminho, da desorientação, da solidão, do diacronismo, do isolamento do ser público, da anulação, da negação, do provisório, do contingente, do indizível. Como outros: “Descobri-me revivendo as perplexidades narrativas de meus primeiros anos, meu sentimento de dúvida e de deslocamento, de sempre me sentir do lado errado, em um lugar que parecia me escapar assim que eu tentava defini-lo ou descrevê-lo.”1

Inicialmente buscava sintetizar na palavra a realidade construída e evidenciar os propósitos a que serviam. Desejava encontrar pelo caminho estratégias de sobrevivência capazes de transgredir os limites do ambiente. Esses objetivos tornaram-se o disparador oculto de uma séria de armadilhas sobrepostas, nas quais fui pega. Meu alvo era o outro, mas um sistema mínimo de espelhamento espacio/temporal fez-me imergir na situação de observadora de mim mesma. Tempo/lugar de auto-invenção, exercício de adaptação.

Quase sempre numa atitude de fuga e com a sensação do erro me deparei com outros, desconhecidos. Com curiosidade sincera me pus a interpelá-los e captar relatos orais: Por favor, digam-me o que eu não sei. Assim iniciei as infinitas transposições da experiência indizível do encontro, neste ponto, traduzido em vocábulo. Colidi com a idéia de mutilação na passagem das coisas inéditas para as coisas ditas – a palavra como rótulo classificatório colocado sobre uma ação ou emoção – , numa simples analogia às privações impostas pelas fendas/pontes que são as estradas ou mesmo pelo espetáculo visceral de cães mortos em suas margens.

Outra situação, mais solitária e mais árida (quando não contei com a cumplicidade do outro), foi a das andanças pelas estruturas rígidas dos viadutos, um mergulho no pó, na fuligem e no incógnito, onde os caminhos se entrecruzam e não há ninguém em quem confiar. O obscuro foi tomado fotograficamente, silenciosamente. A mutilação é um recorte da paisagem. Monumentalidade mórbida.

De automóvel descrevi rotas de fuga, colecionei cenas, experimentei a velocidade para construir a paisagem. Nos deslocamentos também estive de ônibus, por horas. . .


Escrita, regras, critérios e limite

Agora, enredada pela palavra escrita (mundo do poder e das representações) declaro que este ato, o de escrever, é por natureza, o apagamento de realidades e a invenção/descobrimento de outras. Trato aqui da criação de um outro lugar à existência. Tudo o que aqui digo está de acordo com um ponto de vista, com um sistema.

Isto não é um estudo sociológico. Apesar de gerar fontes de dados resultantes de situações humanas, desconsidero metodologias de análise científica. Não quero definir “problemas” de uma coletividade, mas também não tenho a ilusão de uma experiência desinteressada. Há um controle anterior e posterior a ação, isto não escapa. Os dados são fruto do encontro entre pessoas que por razões diversas convergiram naqueles lugares, e isto foge a qualquer regra, qualquer projeto.

Importante são as reações de um e de outro, envolvidos na tentativa de observar o lugar onde estão. Um refinamento da percepção de estar, pelo exercício do lugar, com o outro. Refinamento pelo exercício. Considero que a cumplicidade estabelecida no lapso temporal dessas relações fortuitas direcionadas a observação do lugar operam transformações no modo como os implicados passam a conceber o espaço/tempo.

Classifico, crio distinções entre uma coisa e outra. Como referência/critério tenho a experiência do sentido de dentro e fora, pertencimento e alienação, provocado pela ordem do lugar, pela estrada como limite. O critério surge entre a objetividade da engenharia da estrada recortando o terreno, delimitando o espaço (aqui é Curitiba ali já não é) e a subjetividade dos encontros/limite entre minha vontade e a alheia. Encontro/limite 1: enquanto buscava ter minha questão respondida, a vontade do outro, quase sempre, era de ter respondida uma nova questão (não a minha, mas sobre mim) me tornava nesse momento objeto de observação.

1Edward Said.